Esse blog foi criado pelos alunos do professor Ricardo para divulgar os rascunhos literários.
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segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Chiaroscuro


Seis da manhã com a barriga na pia molhada, ele não pôde resistir e provou uma colherada do feijão gelado que cuidadosamente usava para abastecer a velha marmita amassada. — Há!! se inventassem alguma coisa que impedisse o meu feijão de azedar até a hora do almoço... — Com a dedicação e o carinho de uma mãe que prepara o almoço do filho, o pobre trabalhador se preparava para mais uma jornada.
—Bom dia seu Zé!
—Bom dia senhora. — Respondeu esboçando um sorriso tímido ao chão que a vizinha pisava.
—Dá tchau pro moço! — O menino parecia saber algo que a mãe ignorava. Abraçou o pescoço da mulher e escondeu o rosto.
—Esse menino é tão caipira!
Seu Zé curtia seus últimos instantes de visibilidade. Sabia que ao vestir aquele macacão alaranjado algo como uma mágica aconteceria. Como Harry Potter em sua capa de invisibilidade, ele, sua vassoura e sua pá deixariam de ser vistos por olhos humanos. A magia só não era completa pelo fato das pessoas desviarem dele, dando sinal de perceber sua existência. Essa percepção não era importante o suficiente para tirar um sorriso ou um — bom dia — de ninguém. Mas isso não importa. Vinte anos nessa vida era suficiente para fazer qualquer um se acostumar. — Esse macacão é para mim, como o insul-filme para os tubarões que aguardam o farol abrir.
Entre uma sujeira e outra que pernoitaram a sua espera no meio fio e um copo de papel sujo que lhe saltou à frente quase lhe acertando a perna, seu Zé fazia seu trabalho. Por força da profissão, seu horizonte se limitava a um metro de calçada a sua volta, como se aquele fosse o seu reino, o seu império. De repente, uma poça de água refletiu as pernas bronzeadas de alguma garota. De imediato, o coração do pobre trabalhador disparou. Sua respiração acelerou e tomando de todas as suas forças, o nosso herói largou a vassoura e deu alguns passos apressados em direção ao muro. — Maravilhoso o poder que esse uniforme me concede! Isso teria sido constrangedor se alguém tivesse visto!
As vozes foram diminuindo, outras diferentes vieram. Aparentemente o perigo havia passado. Seu Zé tirou os olhos do muro, analisou cuidadosamente seu universo e pegou a vassoura que havia largado na sarjeta. O surrado crucifixo pôde voltar em paz para o bolso.
Ao retornar o seu trabalho, notou novamente a poça. Dessa vez, parecia inofensiva, salvo o cigarro meio fumado que boiava em um canto. Ele se abaixou, tomou a bituca nas mãos e a examinou como que investigando um crime hediondo. Ela ainda parecia quente, devia ter sido jogada naquela hora. A marca denunciava o batom carmim da sua dona.
—Só pode ter sido deixado por aquela vagabunda, aquela... — Antes de continuar a frase, a guimba lançada ao meio da rua deu lugar ao crucifixo que voltou apressado do seu bolso, como um bombeiro a acudir a um chamado de incêndio. Com toda a fé do mundo, seu Zé, o beijou três vezes e se prostrou de joelhos diante da multidão que passava.
Visível o suficiente para não ser pisado e invisível o suficiente para não incomodar os pedestres da Paulista, o nosso translúcido nordestino aproveitou para fazer o almoço. A marmita vazando e a comida fedendo não o surpreendiam mais. Aquele banquete em frente ao MASP era um privilégio de poucos.
—Nada dignifica mais um homem do que um bom e rotineiro dia de trabalho!

Um comentário:

  1. Gostaria de enviar um texto para participar do blog mas não encontrei o e-mail.

    Abraços
    Manoel
    http://osvandir.blogspot.com

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