Esse blog foi criado pelos alunos do professor Ricardo para divulgar os rascunhos literários.
Se desejar fazer parte, deixe uma mensagem com um exemplo do seu texto.
________________________________________________________________________

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Um conto de Natal - Alvaro Freitas


—Canário da terra macho!
—Desculpa... O que o senhor disse?
—Esse canto é de um canário da terra macho. Eles nascem em Minas, depois migram para essas bandas e só voltam para procriar na primavera.
—O senhor sabe de tudo isso só pelo canto? Eu nem ouvi!
—Eu observo muito. Modéstia a parte, tenho um ouvido e uma memória muito bons.
—O senhor é especialista em aves? Como se diz...
—Ford Corcel 1972, pneus Firestone meia vida. A correia tá na hora de trocar!
O garoto olhou para os lados para ver com quem ele estava falando. Mas além deles, naquela sala de espera, só tinha a secretária do delegado.
—O senhor falou comigo?
—Eu falei do carro que passou lá na rua e entrou na Praça Luiz Prestes sentido Marginal. Eu não consigo evitar!
—Só pelo barulho o senhor concluiu tudo isso?
—Pois é! É um dom que Deus me deu e eu aperfeiçôo a mais de 40 anos.
—Caramba!
—E não é só o meu ouvido não! Tá sentindo esse cheiro?
—Parece que é café.
—Três colheres de café Pilão e uma de Três Corações.
O rapaz ficou sem palavras, então o velho ajeitou o paletó xadrez, deu uma alinhada na gravata borboleta e continuou:
—Alguém colocou o resto de pó de Três Corações e completou com Pilão.
—Ou o contrário!
—JAMAIS! — vociferou. — O cheiro do Pilão é de que acabou de ser aberto, já o outro, tem cheiro de que foi aberto a quatro dias.
—Benza Deus! Isso sim é um dom!
Subitamente a porta da sala do delegado se abriu e um homem saiu apressado, deixando apenas um sinal de positivo para a secretária.
—Latrocínio!
—O senhor o conhece?
—Deus me livre!
—Então como é que...
—Calça larga, pisando mais forte com o pé direito. Até uma criança pode perceber que ele tem o costume de carregar uma pistola nove milímetros na bota.
—Mas ele nem estava de bota!
—Nem com a nove milímetros! Por isso ele tava mancando. Falta de costume de andar desarmado.
—E como o senhor sabe que é latrocínio?
—Saindo com essa pressa da sala do delegado. Claro que ele matou alguém. Aliás, eu investigaria muito bem a secretária. Você viu o olhar dela quando ele saiu?
No telefone a secretária disse:
—Doutor, o técnico acabou de sair. O senhor já pode usar seu computador. Inclusive, já têm duas testemunhas aguardando para o depoimento.
Sem graça, o velho olha para o rapaz e diz:
—Tá vendo? Mais um meliante que se safou. Belo disfarce!
Tentando dissimular a risada, o rapaz muda de assunto.
—O que o senhor vai testemunhar?
—Na noite de segunda, eu tava dormindo quando fui acordado por um tiro a um quarteirão da minha casa. Dois minutos e quarenta segundos depois passou um Chevette 82 com um homem gordo que dirigia sozinho e levava uma caixa grande com um disfarce dentro do porta-malas.
—“Péra” ai! Como o senhor viu tudo isso?
—Não vi. Nem saí da minha cama. Eu ouvi!
—Até o disfarce no porta-malas?
—Pois é!
—E então, o que o senhor fez?
—Vim aqui e contei tudo. No dia seguinte, a Polícia encontrou o carro e o disfarce, montaram uma emboscada e prenderam o vagabundo.
—E ele, confessou?
—No começo não. O safado insistia que o disfarce era para surpreender os filhos. Depois de passar a noite pendurado tomando choque, ele confessou.
Então o delegado chegou, falou com a secretária e entrou na sala.
—Senhor Barbosa, testemunha de acusação do caso do Papai Noel. Pode entrar.
Ele respirou fundo, arrumou o cabelo e a gravata, levantou e disse:
—É meu filho... É graças a homens como eu que esse país ainda é um lugar bom para se viver! Tenho um trabalho a terminar; com licença.

Um comentário:

  1. Para variar, muito bom, Álvaro! A criatividade é tudo na boa leitura. Parabéns!

    ResponderExcluir