Esse blog foi criado pelos alunos do professor Ricardo para divulgar os rascunhos literários.
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sexta-feira, 19 de março de 2010

Oxitoná - Alvaro Freitas

—Aceita um chá?
—Sim, obrigado.
—Então, o que o trouxe aqui?
—Sabe doutor. Eu tenho sentido uma angústia muito grande. Meu coração vive apertado. Tem noites que eu passo em claro só de pensar na minha situação.
—Camomila ou erva-doce?
—Camomila... — Respirei fundo e me acomodei melhor no divã enquanto observava o doutor, calmamente preparar duas xícaras de chá. — Antigamente, tudo era diferente. Eu me sentia mais valorizado, mais útil.
—Açúcar ou adoçante?
—Açúcar.
—Uma ou duas colheres?
—Deixe-me ver a colher, hum... Uma e um quarto, por favor.
—Aqui está!
—Desde o início da minha carreira eu sempre gostei de ser um oxitoná. Minha vida fazia sentido como tal. Eu podia ajudar os outros e contribuir para a minha empresa.
—Se importa se eu ascender um incenso?
—Pode ser de lavanda?
—Claro!
—Quando eu entrei nessa empresa, o meu gerente era um hiato. Ele era um ótimo profissional e trabalhava muito feliz, aliás, hiato é hiato. Por que não haveria de ser feliz.
—Quer que afaste um pouco o incensório?
—Um pouco mais para a direita... Assim está ótimo, obrigado.
—Por nada.
—O Hiato me deixava trabalhar a vontade. Como oxitoná, eu ia aos outros setores, propunha melhorias, ajudava na produtividade e fazia a empresa crescer junto com as necessidades de cada funcionário.
—Interessante!
—O trabalho de oxitoná?
—Não, a fumaça do incenso. Parece um jacaré.
—Um dia, um gerente de outra área — o Proparoxítono — foi promovido para diretor. Incomodado com o sucesso do nosso setor, demitiu o Hiato.
—Pobrezinho!
—Que nada! Ele logo arrumou um emprego melhor, pertinho da casa dele.
—Eu falei do jacaré. Olha só o que ele virou!
—Eu fiquei chocado pelo jacaré, isto é, pelo Hiato. Ele havia me ensinado muita coisa, principalmente, que eu deveria sempre defender meus ideais. — “Eu serei um hiato até o último dia da minha vida!” — Afirmava ele com a mão ao peito como que jurando à bandeira.
—Triste fim!
—Do jacaré?
—É!
—Mas, a vida tem que seguir seu rumo! Então eu continuei sendo, não mais uma oxitoná entre tantos outros, mas o oxitonô. E como fui...
—Quer que ligue o ar quente?
—Se preferir...
—Vou colocar só na ventilação.
—Mas o meu comportamento irritava o Paroxítono. Ele queria que eu mudasse, mas eu recusei. Eu tenho uma profissão a zelar!... O senhor está bem?
—A sim, claro. Só estou alongando minha úvula. Pode continuar!
—Para minha surpresa, o senhor Proparoxítono rapidamente desistiu de mim e promoveu um colega, o Paroxitôno. Rapaz bom e esperto, mas com uma característica que o tornava mais elegível do que eu. Ele era bem mais parecido com o Proparoxítono.
“Cof, cof, cof...” — Quer uma água?
—Não, obrigado. Sem querer engoli o São Benedito. Já estou bem.
—O Proparoxítono, chamou uma reunião com o nosso departamento e falou: “A partir de hoje, todos seremos proparoxítonas!” — Olhou para o meu recém empossado chefe e o alertou: “Lembre-se que quem paga o seu salário sou eu!” — O pobre rapaz não hesitou em concordar. O temível corsário, depositou seu olhar maligno sobre mim e perguntou: “Fui claro?”
—Está muito claro? Quer que apague o abajur?
—Não. Eu estava contando o que o Proparoxítono me falou.
—Há sim, claro. Nossa, quanto claro... Continue!
—A partir desse dia, o departamento inteiro passou a ser proparoxítona. Para o meu chefe, o Paroxitôno, virar paroxítona foi fácil. Mas para mim, um oxitonô, está sendo terrível. O senhor não vai cair daí?
—Não se preocupe, essa estante é bem resistente e eu sou bastante ágil.
—Já se passaram mais de dois anos. Ainda sinto saudade do tempo que cada um podia exercer o seu papel com orgulho. Eu era o oxitonô e trabalhava com o paroxitôno. Hoje, com a nova gramática, todos somos proparoxítonas, e a coisa vai de mal a pior.
—E como você se sente?
—Sinto que aquele não é mais o meu lugar. Sinto que sou uma oxítona inútil numa empresa que só quer saber de proparoxítonas, custe o que custar.
—Desculpe! Eu tinha perguntado para o jacaré da fumaça.
—A tá... O que o senhor, como profissional em gramática me recomenda?
—A gramática moderna é muito rígida. Cedo ou tarde vai ter que se acostumar. Enquanto você trabalhar nessa empresa, seja uma oxítona ou uma paroxítona, você sempre terá que se comportar como uma proparoxítona.
—Obrigado doutor pela consulta!
—Esse é o meu trabalho! Você comprou aquele remedinho que lhe mandei?
—Esse aqui?
—Este mesmo!! Dá um?

4 comentários:

  1. Alvaro que belo, exposição dez, detalhes com muita presença de imagem. Vi, assisti o papo todo. Como sou seletiva, critica, dou-lhe nove. Para continuar melhorando.Coloque aquela feito em aula é inteligente. Deus te abençoe, beijos.

    vera aguiar

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  2. Cheguei a visualizar a fumaça do incenso e a cara de desdem do médico.Senti na pele, a tensão do pobre interlocutor que tem a chance de falar e não é ouvido. O texto envolveu drama, ironia e comedia. Gostei muito.

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  3. Achei muito interessante e até voltei ao tempo que trabalhava em industria e tive que conviver com alguns proparoxitonas que me comandaram.

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